Quinta do Senhor da Serra / Paço de Belas

Lisboa | Sintra

Quinta do Senhor da Serra / Paço de Belas

A meia distância entre Lisboa e Sintra, no sopé da Serra da Carregueira, ocupando vales férteis e húmidos na confluência das ribeiras de Belas e do Jamor, o Senhorio de Belas terá sido constituído por volta de 1147, fruto da doação por D. Afonso Henriques a Robert Lacorne, em agradecimento pelos serviços prestados na conquista de Lisboa. Contudo, os vestígios do povoamento desta região com abundantes recursos remontam ao período Neo-Calcolítico, do qual são testemunhas as várias antas classificadas como Monumento Nacional: Estria, Monte Abraão e Senhor da Serra (Pedra dos Mouros), esta última localizada dentro da Quinta. (igespar.pt).

A presença romana identificou e valorizou a existência de numerosas nascentes, de elevada qualidade e abundantes caudais. No séc. III terá sido construída a barragem de Belas (classificada como Imóvel de Interesse Público), a Nascente da ribeira de Carenque, com um paramento com cerca de 7m de espessura na base e 8m de altura, e uma capacidade de armazenamento de 125 mil m3 de água. Dali partia um aqueduto em direcção a Olissipo (Lisboa), o que atesta a importância então atribuída ao abastecimento urbano (monumentos.pt).

Foi neste enquadramento geográfico extremamente favorável que se desenvolveu o Senhorio de Belas, a partir do séc. XII, e, posteriormente, várias quintas de produção e recreio: Quintã (séc. XVI), Bom Jardim (séc. XVI-XVIII), Fonteireira (séc. XVI-XVIII), Águas Livres (séc. XVI-XIX), Molha-Pão (séc. XVII), e Assunção (séc. XIX). Em 1650 Brandão, F. na “Monarquia Lufitana” refere-se à quinta do Senhor da Serra “He o Senhorio de Bellas mui authorizado, tanto pela jurisdicçaõ que tem na Villa, como pela excellente cafa de Campo dos Senhores della, que affim na fabrica dos Paços, como na frefcura dos jardins, e cópia de polidiffimas fontes he a melhor, que fe fabe em Hespanha, que de Rei naõ feja.” (Brandão, 1650, in Barboza, 1799, p. 22).

Em 1334 os bens do Senhorio de Belas são adquiridos por Lopo Fernandes Pacheco, que os lega a seu filho Diogo Lopes Pacheco, implicado no assassinato de D. Inês de Castro. Aquando da morte de D. Afonso IV, em 1357, D. Pedro I, ao subir ao trono confisca a Diogo Pacheco todo este património e a partir desta data a Quinta de Belas passou a integrar os bens da Coroa, sofrendo importantes obras de transformação em Paço Real, sendo frequentado ao longo do tempo por D. Pedro I, D. Fernando I, D. João I e D. Manuel I.

Depois de várias transmissões e doações resultantes de vicissitudes históricas, no séc. XVI, a Quinta pertenceu à família Atouguia, passando depois para a posse dos Condes de Pombeiro e futuros Marqueses de Belas até 1878, quando foi comprada por José Borges de Almeida. Em 1942 foi vendida à família actual proprietária, que tem promovido a sua preservação e restauro, inicialmente sob a direcção do arquitecto Raul Lino, e, desde 1992, sob a direcção do proprietário e arquitecto José António Victorino.

As intervenções dos séculos XIV-XV e XVIII-XIX foram particularmente interessantes, respectivamente, nos jardins dentro da cerca do Paço; e na sua envolvente (alamedas, pomares ajardinados, jardins em socalcos na mata, esculturas e elementos de água). Foi então que se terá desenvolvido a estrutura actual e criado o conjunto patrimonial que viria a ser classificado como Imóvel de Interesse Público em 1943: Paço Real (séc. XIV); jardins do Paço (séc. XV-XVIII), incluindo fontes, tanques, muros e mirante; Capela e Via-sacra (1740), celebradas na Romaria do Senhor da Serra, que se realizava no último dia de Agosto. Destaca-se uma obra prima; a Fonte de Neptuno (Bernini, 1770), actualmente no Palácio Nacional de Queluz; uma obra de elaborada hidráulica; a Cascata constituída por grotto, casa de fresco e lago (Cyrillo Volkmar Machado, 1793); e o Obelisco (Barros Laborão, 1795) comemorativo da visita dos Príncipes Regentes D. João e D. Carlota Joaquina na base do qual assenta uma notável peça escultórica. O Obelisco marca a visita real e marca o extremo da nova alameda de entrada na Quinta a qual era ladeada por centenas de árvores exóticas, entretanto desaparecidas.

Os plátanos, teixos e buxos arbóreos existentes nos jardins e alamedas, assim como a mata espontânea que reveste a encosta do Senhor da Serra, constituem igualmente um conjunto patrimonial de grande valor, reconhecido pela Direcção Geral de Florestas em 2001, através da sua classificação como Arvoredo de Interesse Público.

É de salientar a continuidade espacial e temporal desta unidade de paisagem, e das suas funções de produção agrícola e de recreio, desde o séc. XIV até aos dias de hoje. Inserida desde 1980 num contexto de urbanização densa e desregrada, do qual se destaca o impacto visual e sonoro do viaduto da CREL, passando sobre o obelisco e reduzindo o valor patrimonial da Quinta do Senhor da Serra, os atuais proprietários fizeram-na sobreviver à especulação imobiliária sem a dividir e por isso esta quinta constitui hoje um exemplo de valor histórico-cultural e de sustentabilidade paisagística.

Em 2006 no âmbito do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu EEA Grants, a direcção da Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos (hoje em dia Associação de Jardins históricos AJH) identificando dois sectores prioritários onde se poderiam enquadrar o restauro de jardins históricos, lançou a possibilidade de envolver os seus sócios proprietários de jardins com vista ao financiamento do seu restauro profissional.

1º Conservação do património cultural e europeu, abrangendo duas ou três áreas preferenciais (promoção e valorização de património cultural não mobiliário; reabilitação de património histórico e cultural e reabilitação de áreas urbanas em locais históricos);

2º Protecção do Ambiente, abrangendo a área preferencial melhoramento de sistemas de gestão de água;

Com esta iniciativa que foi ganha em 2007/8 reforçou-se a experiência no restauro de jardim, o papel efetivo da APJSH na defesa, conservação e valorização de jardins e sítios históricos. Foi constituída uma equipa nacional com o máximo de experiência na área de projeto e restauro de património paisagístico a qual iniciou a preparação da candidatura que visava o financiamento de um “Projecto de Recuperação de Sistemas Hidráulicos, Muros e Caminhos em Jardins Históricos” e que foi aplicada a doze jardins no continente e nos Açores. A metodologia de trabalho baseou-se nos princípios da Carta de Florença assinada por todos os países que integram o Comité Científico de Parques e Jardins do ICOMOS (UNESCO) em 1981 e noutras convenções internacionais de defesa do património. Estes princípios consideram o jardim histórico como monumento e recomendam o seu restauro e conservação atendendo a todos os requisitos das leis do património.

Este projeto do qual beneficiou a Quinta do Senhor da Serra proporcionou um conhecimento mais aprofundado sobre a Quinta, útil para futuras intervenções de preservação e restauro mais abrangentes. O projeto de preservação e restauro foi elaborado sob a coordenação do arq. Paisagista Miguel Coelho de Sousa e de acordo com as recomendações da coordenação da APJSH fundamentadas nas Cartas e Convenções Internacionais. A proposta baseou-se nas sucessivas investigações sobre a Quinta, no estado de conservação e no potencial dos seus elementos para recreio e turismo.

A documentação que regista os elementos arquitectónicos e paisagísticos foi estudada, destacando-se um elaborado relatório de 1799 assinado por Domingos Caldas Barboza (1799) Descripçaõ da Grandiosa Quinta dos Senhores de Bellas, e notícia do seu melhoramento que permite a reconstituição da estrutura e da composição da paisagem da Quinta na segunda metade do séc. XVIII, e já no seculo XIX o registo de Hygino Gagliardi (1873) o Relatório das Herdades de Bellas que permite a reconstituição dos circuitos hidráulicos em funcionamento na época. A investigação histórica e a exploração no terreno permitiram clarificar os fluxos hidráulicos originais, para se proceder no futuro a um restauro seguro.

Para o restauro de 2009/2010 procedeu-se a trabalhos de desmatação, limpeza e prospecção, os quais foram revelando situações de degradação muito avançadas no que diz respeito ao conjunto de escadarias e muros de suporte da Cascata, Via-sacra e Capela do Senhor da Serra, e às estruturas de captação e distribuição de água. O Paço e os seus jardins, na margem esquerda da ribeira de Belas, eram alimentados pelos abundantes caudais das nascentes e minas existentes no Vale do Castanheiro, Herdade do Broco (Quinta da Fonteireira), à cota aproximada 180/200m, conduzidos por uma conduta com cerca de 2500m de extensão, que atravessava a Vila de Belas e entrava no Paço em aqueduto sobre a Estrada Real. A data da construção deste sistema não foi determinada, mas foi possível reconstituir o seu traçado graças à descrição da sua reparação por Gagliardi, e pela memória de alguns habitantes locais, permitindo a localização dos troços remanescentes.

Precisa saber-se que a pesquiza da agua era n’um pequeno valle chamado do Castanheiro, dividido por uma arrebatada ribeira, marquei o canal de reconhecimento do lado do sul em procura da agua, que com pequeno esforço encontrei logo três e meio anneis, marquei a segunda valla do lado oposto da ribeira e quando foram abril-a encontraram os trabalhadores um aqueducto antiquíssimo todo elle obstruído de lodo até ao tecto, limpei-o e segui o andamento do mesmo. [...] Encheu-me de contentamento pois que utilisava nada menos que 200 metros correntes de um bellissimo aqueducto da largura de 0m,88 e de 1m,05 de alto summando ao todo entre o ajusante e amantante 700 metros, que no curso de 2 kilometros e meio que as aguas percorrem s. Ex.ª o sr. Marquez poupou uma importante somma.” (Gagliardi, 1873, pp. 4-6).

A abundância e a pressão com que estas águas chegavam ao Paço permitiu o funcionamento por gravidade das bicas dos tanques exteriores, das fontes do jardim Norte e do lago do jardim de buxo, que se encontrava em circuito aberto, até 1974 e que são descritas por Barbosa “Efte Lago [...] fe enche continuamente pela boca de outro Leaõ, que [...] defpeja fempre hum grande chorro de agua. He igual a que cahe de huma bica em outro Lago, que fica á direita da porta que dá entrada ao mefmo Palacio.” (Barboza, 1799, pp. 11-12).

Na margem direita, o conjunto hidráulico da Cascata era alimentado pela água captada na Mina, que se encontra na meia encosta, famosa desde os tempos de D. Manuel I e ainda em pleno funcionamento. Os campos de cultivo situados, ao longo de ambas as margens, eram regados com água retida em sucessivos açudes erguidos no leito da ribeira e beneficiavam ainda dos caudais referidos anteriormente, depois de alimentarem os elementos de água ornamentais. A abundância de água e a antiguidade desta quinta são uma marca forte que confere um valor excepcional a este monumento. As alamedas de buxo antigo, as fontes no terreiro da entrada e os tanques marcam os vários espaços da quinta deixando registado a passagem de sete séculos dos quais restam marcas de cada período desde a Idade média até aos dias de hoje.

A participação no projecto EEA Grants proporcionou um conhecimento mais aprofundado sobre a Quinta do Senhor da Serra, e garantiu o conhecimento dos antigos sistemas hidráulicos e de modelação do terreno o que terá uma enorme importância para futuras intervenções de preservação e restauro deste valioso património paisagístico.

É de sublinhar o papel agregador social que a Quinta do Senhor da Serra foi ganhando ao longo dos seculos pois nela se juntavam em festas e feiras as populações vizinhas num ambiente de abertura que Barboza sublinha com um convite a todos.

“[...] nova, e generofa franqueza faz abrir, e patentear as portas da Quinta a toda a peffoa, que queira vê-la, e que lhe agrade paffeá-la. Saiba o curiofo Eftrangeiro, a quem a viçofa, e faudavel Bellas tem aqui chamado, que achará fempre livre, e franca a entrada da célebre Quinta de feus Generofos Senhores. Saõ livres os paffeios della: as fuas flores, e os feus mefmos fructos fe confiaõ da cortefia pûblica: as fuas agoas faborofas, e medicinaes correm para todos de graça, como nafcem. [...] entrai, e paffeai aqui, como vos convem a pé, ou ainda a cavallo [...] huma porta fempre aberta para todos.” (Barboza, 1799, p. 36-37).

Classificado como Imóvel de Interesse Público segundo o Decreto n.º 32 973, DG, 1.ª série, n.º 175 de 18 agosto 1943 *1.

Texto de Inventário: Miguel Coelho de Sousa – 2009.

Adaptação: Guida Carvalho – 2020.

Revisão: Cristina Castel-Branco – 2020.

Quinta do Senhor da Serra / Paço de Belas

(Consultada em Setembro de 2019)
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Praça 5 de Outubro, Belas